No último capítulo do tratado intitulado Musica Poetica (1606) de Joachim Burmeister, o autor formula a análise musical de um moteto de Orlando di Lasso, com o objetivo de ensinar a compositores iniciantes as possibilidades de estudo do repertório vigente, colocando em evidência os fundamentos do processo criativo musical para torná-los acessíveis para imitação. Essa análise é considerada pela musicologia moderna como uma das primeiras iniciativas do gênero, conforme afirmam Rivera (1993), Palisca (2001), Dunsby e Whittall (1988), por exemplo; e há consenso quanto a seu valor histórico e pedagógico. No entanto, seu valor técnico, ou seja, seu reconhecimento como ilustração das formas de acesso ao repertório antigo é controverso, uma vez que apresenta respostas para perguntas que podem não ter sentido para os analistas e críticos de hoje. De fato, ela foi concebida para atender a demandas de formação musical próprias do início do século XVII e respondem a questões emergentes desse contexto. Considerando que o distanciamento histórico entre nosso tempo presente e seu passado de origem é também um distanciamento cultural, reconheço que o estudo dessa análise em seus próprios termos nos possibilita recuperar conceitos, ideias, técnicas, processos, procedimentos e modos de escuta e reflexão ocultos por esse distanciamento, superando anacronismos e contribuindo para a renovação de sua compreensão hoje.